Cegueira botânica, conservação ambiental e sustentabilidade

Psychotria suterella (Rubiaceae) no início da nossa Trilha do Lago. Foto: Luca Hermes Pusceddu

A professora do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo e Vice-Diretora do Parque CienTec USP, Suzana Ursi, recomenda cinco leituras sobre a incapacidade de pessoas perceberem plantas e as implicações do fenômeno para a conservação da biodiversidade

A cegueira botânica é um conceito chave para a promoção da conservação ambiental. Refere-se à incapacidade de seres humanos de notar as plantas em seu próprio ambiente, com consequências nefastas para o conhecimento e as atitudes em relação a organismos tão essenciais, sendo a mitigação dessa cegueira urgente no atual cenário de riscos à biodiversidade.

James H. Wandersee e Elisabeth E. Schussler apresentaram o conceito em 1998, durante a 3ª Reunião Anual de Associados do 15° Laboratory (focado em pesquisas sobre cognição visual e ensino de botânica) e, no ano seguinte, introduziram o tema em um artigo. Porém, a nova teoria foi apresentada de forma mais estruturada em 2001, no reconhecido periódico Plant Science Bulettim.

Nas duas décadas seguintes, inúmeros estudos e reflexões foram realizados focando aspectos diversos da cegueira botânica, em contextos variados, especialmente aqueles inseridos em ambientes urbanos. Apresentamos a seguir cinco referências sobre esse conceito e sua relação com a conservação ambiental. Elas discutem os aspectos básicos da teoria, alguns de seus principais contrapontos, um exemplo empírico que a reforça, a importância da mitigação dessa cegueira para a conservação e, finalmente, sua relação com a sustentabilidade.


Toward a Theory of Plant Blindness

James H. Wandersee e Elisabeth E. Schussler (Plant Science Bulletin, 2001)

Este artigo apresenta aspectos essenciais e delimita o termo cegueira botânica, construindo argumentos a favor de uma nova teoria e apresentando possíveis causas e consequências desse fenômeno. Ainda, propõem possíveis formas de enfrentamento da cegueira botânica. Dentre suas principais consequências, destaca: incapacidade de reconhecer a importância das plantas na biosfera e para o cotidiano dos seres humanos; incapacidade de apreciar os aspectos estéticos e biologicamente únicos das formas de vida das plantas; e comparação equivocada, em uma concepção antropocêntrica, das plantas como inferiores aos animais, levando à conclusão errônea de que elas são seres inferiores e, portanto, menos dignas da atenção e valorização.

Os autores apontam que desenvolveram a teoria por acreditarem, com base em seus estudos e pesquisas, que o estado de desatenção e sub-representação de plantas, não apenas no ensino de biologia, mas na sociedade em geral, poderiam ser melhor explicados pelo uso de princípios de percepção e cognição humana baseados em evidências de pesquisa do que por hipóteses relacionadas à vieses e deficiências no ensino de botânica, descritas anteriormente por outros autores que pensaram sobre essas limitações em termos de valorização e estratégias didáticas, bem como sua relação com o zoochovinismo. São exemplos Gordon E. Uno e David R. Hersey. Assim, fica evidente que, segundo Wandersee e Schussler, a cegueira botânica é um fenômeno de causa sensório-cognitivas anteriores às questões de ensino-aprendizagem. No entanto, não deixam de reconhecer a grande importância dos aspectos culturais no fenômeno e ressaltam a relevância da educação de boa qualidade para a mitigação dessa cegueira.


Plant Blindness: “We Have Met The Enemy and He Is Us”

David R. Hershey (Plant Science Bulletin, 2002)

Este artigo apresenta uma crítica à teoria da cegueira botânica. Hershey reconhece o valor da proposição e considera que a cegueira botânica seria um termo útil e cativante para se referir ao analfabetismo botânico e a negligência em relação às plantas no ensino de biologia. Também concorda com a conclusão de Wandersee e Schussler sobre as pessoas frequentemente saberem mais sobre animais do que sobre plantas. Porém, não existiriam evidências concretas de que esse cenário seria efetivamente causado por uma limitação na percepção visual humana em relação às plantas. O autor rebate alguns dos princípios de percepção visual utilizados para ancorar a teoria, argumentando que a literatura citada não contém experimentos específicos sobre a percepção das plantas.

Em contraste, muitas evidências sólidas já haviam sido reportadas no sentido do zoochovinismo (preferência pelos animais em relação às plantas) e da negligência generalizada com as plantas serem causas contundentes para os sintomas da cegueira botânica. Portanto, para aprimorar a educação em botânica, a abordagem mais produtiva seria trabalhar para reduzir o zoochauvinismo e essa negligência com as plantas. Nesse último ponto, existe convergência entre as ideias de Hershey e de seus colegas. São listadas 10 estratégias importantes a serem adotadas pelas Sociedades Científicas Botânicas visando o enfrentamento da cegueira, como: o oferecimento de cursos para professores da educação básica, abordando experiências práticas inovadoras e materiais didáticos; a utilização das páginas de internet como ambientes capazes de chamar a atenção de não-botânicos para as plantas e oferecer materiais atualizados e interessantes à professores; dentre outras.


Attention “Blinks” Differently for Plants and Animals

Benjamin Balas e Jennifer L. Momsen (Life Sciences Education, 2014)

Este artigo é uma das poucas investigações que apresentam evidências experimentais da cegueira botânica baseando-se no campo da percepção visual. O sistema cognitivo tem capacidade limitada de processar informações, sendo algumas priorizadas em detrimento de outras. A influência do tempo entre a apresentação de dois estímulos é relevante, uma vez que, dependendo do intervalo, a atenção ao primeiro estímulo prejudica a percepção do segundo. Esse fenômeno é chamado de piscar atencional. Benjamin Balas e Jennifer L. Momsen utilizaram esse parâmetro bem estabelecido para testar a hipótese de que a atenção dos seres humanos é capturada de forma diferente por plantas e animais, buscando mensurar empiricamente tal discrepância.

Os participantes foram mais capazes de detectar animais do que plantas ao observarem sequências de imagens apresentadas rapidamente e o número de alarmes-falsos foi maior para plantas. Ainda, a atenção visual apresentou um período refratário diferente quando uma planta foi detectada. Esses resultados sugerem que há diferenças fundamentais em como o sistema visual processa as plantas, se comparadas aos animais, suportando a ideia de que uma das causas da cegueira botânica reside em limitações perceptivas-fisiológicas. No entanto, os autores ressaltam que suas conclusões não excluem que causas culturais (por exemplo negligência com as plantas e zoochauvinismo) também façam parte das causas dessa cegueira. Dentre as recomendações para aprimorar a educação botânica, sugerem que a existência da diferenciação perceptiva entre plantas e animais seja amplamente divulgada, bem como a utilização de metodologias embasadas na Teoria cognitiva de codificação dupla (Allan Pavio), aliando estímulos visuais e verbais.


Plant Blindness and the Implications for Plant Conservation

Mung Balding e Kathryn J.H. Williams (Conservation Biology, 2016)

Este ensaio é desenvolvido a partir da constatação de que as iniciativas de conservação de plantas recebem consideravelmente menos atenção e financiamento do que as relacionadas a animais. A cegueira botânica é apontada como um dos motivos para tal discrepância, sendo um fenômeno detectado em muitas partes do planeta. Em contraste, pesquisas etnográficas revelam que muitos grupos sociais têm fortes laços com as plantas. A partir desse cenário, Mung Balding e Kathryn J.H. Williams argumentam que a cegueira botânica é um fenômeno comum, mas não inevitável. O ser humano, se imerso em uma cultura que apresenta laços fortes com as plantas, pode experimentar linguagem e práticas que aumentam a capacidade de detectar, lembrar e valorizar as plantas, algo menos provável de ocorrer em sociedades zoocêntricas (isto é, que privilegiam culturalmente a atenção em animais).

Pesquisas na área de psicologia demonstram que as pessoas são mais propensas a apoiar a conservação de espécies que têm características semelhantes às humanas. Assim, destaca-se que programas ancorados na identificação e na empatia com as plantas, bem como em sua apropriada atromorfização, podem contribuir para reduzir a cegueira botânica e estimular o comportamento de conservação desses organismos. Nessa perspectiva, os autores apresentam algumas estratégias importantes para projetos de conservação, como possibilitar experiências diretas com plantas, enfatizando semelhanças entre elas e os seres humanos (por exemplo estar vivo, colaborar com os vizinhos ou possuir movimentos intencionais). Outra sugestão é usar atividades criativas para promover empatia com plantas, como aquelas promovidas em parceria entre botânicos e artistas, envolvendo desenho, interpretação de papéis, elaboração de histórias, dentre outras.


Plant Blindness and Sustainability

Howard Thomas, Helen Ougham e Dawn Sanders (International Journal of Sustainability in Higher Education, 2021)

Esta revisão apresenta um panorama bastante completo e atualizado sobre a cegueira botânica, inserindo-a no contexto dos atuais debates sobre sustentabilidade. Howard Thomas, Helen Ougham e Dawn Sanders destacam que a cegueira botânica é um campo de pesquisa relativamente novo e sua amplitude e implicações estão lentamente se tornando aparentes. O próprio termo vem sendo contestado, pois seria capacitista e pouco inclusivo. Os autores desejam que o artigo contribua para o posicionamento de plantas como elementos essenciais na educação e na prática da sustentabilidade. Para tanto, abordam a importância fundamental desses organismos para a vida na Terra e os desafios socioeducativos relacionados a promover a consciência sobre tal importância. Ainda, examinam, à luz da atual agenda de sustentabilidade, as consequências e as diversas origens da indiferença às plantas, enfocando aspectos filosóficos, psicológicos, culturais e geopolíticos.

Com base nos resultados de uma série de pesquisas e iniciativas práticas, evidencia-se como as abordagens multidisciplinares na educação e na promoção do engajamento público têm potencial na mitigação da cegueira botânica. No entanto, a inclusão das plantas nos currículos é pouco presente e as forças socioeconômicas de resistência ao enfrentamento da negligência em relação às plantas ainda são contundentes. Os autores ressaltam que a sustentabilidade em tempo de cegueira botânica não é sustentável, uma vez que tal cegueira representa um obstáculo constante ao equilíbrio ambiental e, consequentemente, ao alcance dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável propostos pela ONU. Finalizam o artigo destacando que a formação de professores é um aspecto crítico para o enfrentamento da perda da biodiversidade e das mudanças climáticas.

Suzana Ursi é docente do Departamento de Botânica do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo e, atualmente, vice-diretora do Parque CienTec-USP. Coordena o BotEd - Grupo de Pesquisa Botânica na Educação, cujas principais linhas são formação de professores e percepção ambiental.


Matéria publicada originalmente no site Nexo Jornal em 23/06/2021. Reprodução autorizada pela autora.

Ursi, S. (2021) Cegueira botânica, conservação ambiental e sustentabilidade.